808/2025 - O Coração de Cunhaú
O Coração de Cunhaú
Por Neide Rodrigues
Dizem que quando o silêncio cai sobre Cunhaú, e a brisa do rio murmura entre os galhos dos cajueiros, a Capela ganha vida. Não uma vida como a dos homens, efêmera e ruidosa, mas uma vida ancestral, feita de memórias, fé e sacrifício. Há quem jure ter escutado vozes sussurrando preces entre as paredes cobertas de tempo, ou ter sentido a presença de mãos invisíveis acalentando o peito em prantos.
Naquela madrugada de lua alta, Clara, uma jovem historiadora vinda de longe, chegou ao vilarejo. Seus olhos buscavam mais que datas e nomes. Desejava tocar o espírito de Cunhaú. Trazia consigo um antigo caderno herdado de seu avô, onde estava copiado o poema “Os Mártires de Cunhaú”, com letras caprichadas e traços de emoção entre as linhas. Ele dizia que o texto havia sido sussurrado em sonho por uma voz que não era deste mundo.
Ao adentrar a capela, descalça, como aprendera com os moradores locais, Clara sentiu o tempo abrandar. As velhas paredes pulsavam como se respirassem. O cheiro de madeira antiga e cera derretida preenchia o ar. Sentou-se em um dos bancos e recitou os versos em voz baixa, como quem desperta algo adormecido. E então, o milagre se deu.
O sino, que há décadas não ressoava, soou uma única vez, ecoando além do espaço físico. A luz das velas se acendeu sozinha, tremeluzindo como estrelas ao vento. Diante do altar, figuras etéreas começaram a surgir. Não eram fantasmas, nem causavam medo. Eram homens e mulheres vestidos com roupas simples, cobertos de uma luz que os tornava quase transparentes. Clara sabia quem eram, mesmo sem nunca os ter visto: os mártires.
Um deles, um ancião de semblante sereno, aproximou-se devagar. Seus olhos continham o brilho de quem viu o fim, mas também de quem crê no recomeço. Sua presença era acolhedora, como uma prece que envolve a alma em ternura.
— Filha da memória, tua alma buscou mais que histórias, buscou justiça. Por isso viemos.
Clara, sem palavras, apenas assentiu.
— Fomos ceifados em nome da fé, não pelo ódio, mas por amor ao Senhor. Não clamamos vingança, mas lembrança. Tu nos honras ao escrever, ao sentir. E por isso, abrimos o tempo para ti.
Quando estendeu a mão e tocou a dela, Clara foi tomada por uma visão. Tudo ao seu redor se dissolveu, e ela foi levada ao passado, ao Engenho Cunhaú de 1645. Viu o povo reunido, os fiéis de cabeça baixa durante a missa. O aroma da cana no ar, o ranger das correntes do portão de entrada, o presságio de um mal que se aproximava. Viu soldados entrando com fúria, o altar sendo invadido, e o sangue se unindo ao vinho sagrado.
Mas também viu coragem. Viu mães protegendo seus filhos com o corpo, homens entregando sua vida em oração, corações firmes diante da morte. Sentiu o terror, sim, mas acima dele, sentiu a fé inabalável dos que ali tombaram. E ao fim, viu uma chama se erguer. Não de destruição, mas de esperança, iluminando o futuro de um povo que jamais os esqueceria.
De volta à capela, Clara chorava. Não eram lágrimas de medo, mas de reverência. Os mártires agora se ajoelhavam diante do altar, onde o sangue derramado havia se transformado em flores brancas. As pétalas subiam em espirais de luz, como orações silenciosas rumo ao céu.
— Não deixes que nossa lembrança se apague nas páginas frias da história. A Capela vive, enquanto houver quem reze, quem conte, quem escreva.
Na manhã seguinte, Clara acordou deitada no banco de madeira. Tudo parecia igual, mas o ar tinha outra densidade. O caderno em seu colo agora tinha novas páginas escritas, não por sua mão, mas com caligrafia antiga. Histórias dos que haviam partido, mensagens de fé, e versos inéditos sobre Cunhaú. Era sua missão continuar.
Desde então, Clara se tornou guardiã da memória. Escreveu livros, percorreu vilas, acendeu a fé em corações adormecidos. Não buscava aplausos, apenas ecoar a verdade viva que conhecera naquela madrugada. A Capela passou a ser visitada por muitos. Não apenas por religiosos, mas por sonhadores, artistas, poetas e curiosos. E todos, de alguma forma, saíam diferentes.
Dizem que à noite, quando os sinos não tocam e os grilos fazem silêncio, a Capela ainda respira. Há sempre uma vela que acende sozinha, ou uma flor que brota ao pé do altar. Talvez seja Clara. Talvez sejam os mártires. Ou talvez seja a fé de um povo que não esquece.
Porque Cunhaú, terra onde o rio beija a areia, não é apenas um lugar. É um coração pulsando eternamente no peito do Brasil, guiado pelos mártires, velado pela fé, e celebrado por cada alma tocada por sua história.
Inspirado nas poesias "Os Martires de Cunhaú" e "Capela do Cunhaú", da autora.
Neide Rodrigues
Enviado por Neide Rodrigues em 08/07/2025
Alterado em 14/07/2025